terça-feira, 28 de agosto de 2012

2º CAPÍTULO - O CORPO


O sol surgia ainda tímido entre as alvas nuvens que insistiam em permanecer acordadas. A lua ainda era vista no lado oposto, iluminada por ele.

Santa Maria é uma cidade de médio porte. Com dois milhões, trezentos e quarenta e três mil habitantes, segundo a última pesquisa realizada dois anos atrás.

Um dos municípios mais prósperos do estado de São José é muito bem governado a quarenta anos. Desde que um grupo de empresários e comerciantes bem sucedidos resolveu concorrer as eleições municipais daquele histórico 1890.

São José é um dos oito estados do país e tem forma de trapézio. Não é uma ilha mas é cercado de água por todos os lados. Ao norte assim como ao sul os rios Bello e Sertão são os limites, à oeste o Pirapora; o maior deles e a leste o mar com suas belas ilhas.

Santa Maria está localizada ao norte do estado, no vértice formado pelo mar com o Rio Bello. A beleza do conjunto formado por suas montanhas e litoral faz do município um dos mais conhecidos polos turísticos do país.

É onde se concentram as sedes das maiores empresas o que faz da cidade o centro econômico do país.

São Joaquim, nome dado em função de sua colonização é um pequeno país, com aproximadamente quarenta e quatro milhões de habitantes, farto em riquezas naturais. O clima é tropical, o solo é fértil e é um grande produtor de petróleo e minério de ferro.

O relevo é bastante peculiar. O país é cortado por três cordilheiras que formam um grande “F”, onde se concentram suas exuberantes florestas.

Cordilheiras intercaladas por planícies e planaltos onde prosperam sua agricultura e pecuária de maneira tal que suprem com folga as necessidades do povo. O excesso é mundialmente disputado devido a qualidade com que são produzidos.


Na planície mais ao norte localizam-se suas pequenas, mas importantes indústrias; hoje bastante conhecidas pela qualidade dos produtos fabricados.

Esse conjunto de particularidades fez com que São Joaquim se tornasse uma das maiores potências econômicas no planeta.

Mas nem sempre foi assim.

A partir de sua descoberta São Joaquim tivera sucessões de governos mal sucedidos. Devido a natureza extrativista de seus colonizadores, os governantes eram corruptos e incompetentes. Foram quase sete séculos de destruição, comércio ilegal, aniquilação da fauna, desmatamentos, prostituição, exploração excessiva com a cobrança de impostos exorbitantes e desrespeito as leis. Tudo isso feito sob o frágil véu formado pelas belezas e fartura de produtos nativos.

A saúde como a educação não eram prioridade e com isso mantinham o povo distante da real situação. Apenas uma pequena parte da população tinha acesso a uma boa educação e sistema de saúde de qualidade. Era número irrisório que não conseguia decidir nada com seus votos.

A maioria era mal nutrida e totalmente desinformada. Era mantida nessa situação a custa de auxílios alimentação e escola, postos de fornecimento de alimentação de baixo custo e outras ações populistas.

Como se isto não bastasse, esportes com baixo investimento eram utilizados como diversão como mais uma forma de esconder a realidade.

Grande parte da mídia era corrompida e com incentivos a essas ações e Projetos assistencialistas capengas davam às tristes Crianças Esperança assim como a seus pais carentes de dignidade.

Sob o pretexto de uma nova maneira de consumir o mundo, foi criada uma onda pró-ecologia visando um mundo melhor e sustentável.


A ideia era ótima, mas a forma como fora implementada não foi. Criaram organizações que receberiam parte dos impostos recolhidos diretamente e com isso diminuir-se-ia a possibilidade desse dinheiro se perder nas mãos dos políticos corruptos.

Mas esses políticos de alguma forma se associaram a muitas dessas organizações invalidando todo o processo.

A corrupção era tanta que se instituiu em todas as camadas sociais. Desde o tráfico e comércio de drogas, passando pelos produtos piratas, pelo jeitinho com que se resolviam os problemas, pela polícia, pelos órgãos públicos culminando nos altos escalões governamentais. Pouco da engrenagem econômica do país passava incólume por essa estrutura.

Terras ditas improdutivas eram distribuídas àqueles que não as tinham, em mais uma medida social, mas na realidade nada mais era do que um movimento organizado por pessoas de posse para se beneficiar de alguma forma.

Em 1876 iniciou-se, muito timidamente, uma revolução que viria mudar a história do país.

Alguns poucos fazendeiros, empresários e comerciantes, cansados de tantas injustiças resolveram se unir em reuniões que logo tornaram-se movimentos com a criação de um partido a fim de concorrer as eleições.

Um movimento inteligente, pacífico que começou com esclarecimentos às classes desfavorecidas, informando que eles tinham direito a uma vida melhor e que a única forma de obtê-la seria mudar seu comportamento bem como substituindo os governantes, origem do problema.

Foi um árduo trabalho de educação que só começou a surtir efeito em meados de 1880.

Até então muitos foram mortos por assassinos de aluguel cujos contratantes não eram desconhecidos.

O Partido da Plena Democracia, PPD, foi se consolidando e concorrendo às eleições.

Em cada uma delas o número de eleitos foi aumentando até se tornar maioria e em 1920 conseguiram eleger o Presidente, cinco governadores e a maioria dos prefeitos, Senadores, Deputados e Vereadores do país.


A revolução havia se consolidado sem o derramamento de única gota de sangue, a não ser aquelas dos brutalmente assassinados no início do processo.

As ações que viriam a consertar o país tiveram início e as mais importantes foram:

Suprimiu-se cem por cento das mordomias oficiais e foram leiloados todos os objetos provenientes desse corte. Destinaram parte do valor obtido na construção e manutenção de postos de saúde distribuídos em todos os municípios possibilitando a criação de um Plano de Saúde Preventivo.

A outra parte foi utilizada para criar institutos de pesquisa científica, empregando centenas de jovens cientistas a fim de aumentar a competitividade e produtividade da nação.

Reduziu-se o salário de todos os funcionários do governo, dos deputados e dos altos funcionários públicos. Com esse montante criou-se um fundo que dá garantias de bem-estar para idosos "improdutivos" em difíceis condições financeiras que garantam um salário vitalício. Tudo isso sem alterar o equilíbrio do orçamentário.

Aboliu-se o conceito de paraíso fiscal e emitiu-se um decreto presidencial que criou uma taxa de emergência de aumento de impostos a incidir sobre os vencimentos e transações de todas as famílias mais abastadas. Com esse dinheiro sem afetar um só tostão do orçamento, contratou milhares de recém-diplomados desempregados, como professores na educação pública.

Implementou-se a cobrança de impostos apenas no início da cadeia comercial de alimentos e bens consumíveis ou imóveis permitindo melhor controle, menor tributação, maior arrecadação e diminuir a “máquina” fiscalizadora.

Privou-se as Igrejas de subsídios estatais que financiavam exclusivas escolas privadas, e pôs em ação um plano para a construção de milhares de creches e escolas primárias, a partir dum plano de recuperação para o investimento em infraestrutura. nacional.

Criou-se um "bónus-cultura", um mecanismo que permite a qualquer pessoa deixar de pagar impostos se este se estabelecer como uma cooperativa e abrir uma livraria independente contratando, ao menos, dois funcionários a partir de uma lista nacional de desempregados.

Implementou-se uma efetiva política de controle de natalidade com resultados significantes já no primeiro ano de governo.

As escolas passaram a ensinar civilidade aos estudantes desde a tenra idade fazendo-os entender que o respeito ao outro, à coisa pública e a natureza são imprescindíveis para um bem viver.

Construiu-se dezenas de condomínios de casas populares com infra estrutura e transporte de qualidade para a população carente. Para ser proprietário de um desses imóveis o contribuinte se utilizaria de um financiamento específico oferecido pelo governo. Com isso as favelas foram retiradas dos morros e em seu lugar foi feito replantio de vegetação nativa recuperando cem por cento da área desmatada.

Lançou-se um processo que dá aos bancos uma escolha: Aquele que ofereça empréstimo bonificados às empresas do país que produzem bens; recebe benefícios fiscais. E aquele oferece financiamentos a custa de juros financeiros; paga uma taxa adicional.

Criou-se Projetos de incentivo a agropecuária com a garantia de compra dos produtos com no mínimo quinze por cento de lucro do que fora comprovadamente gasto na sua produção.

Acordou-se com as forças armadas de utilizar seu efetivo, equipamentos e máquinas, bem como seu conhecimento para abrir novas estradas e ferrovias para escoamento da produção.

Incentivou-se parcerias com empresas idôneas a fim de reformar e ampliar a malha viária permitindo a cobrança de pedágio, mas somente após a conclusão das obras.

Prendeu-se os corruptos e recuperou-se grande parte do que havia sido usurpado. O montante foi imediatamente direcionado a reforma das escolas e hospitais e construção de novos. Os imóveis foram colocados a leilão cujo resultado fora aplicado em saneamento básico.

Reformou-se os presídios aumentando o número de celas permitindo uma para cada quatro presos em contrapartida eles deveriam trabalhar produzindo parte de seu alimento, ou servir de mão de obra para os serviços em obras públicas, ou produzir itens cujo resultado da comercialização seria dividida sendo cinquenta por cento para o preso e o restante para o estado cobrir as despesas de manutenção dos presídios.

Aboliu-se o voto obrigatório.

Com essas e outras medidas o país tornou-se mais seguro, produtivo, com um povo educado, capaz e com elevado nível cultural e econômico. Os índices de saúde diminuíram sensivelmente com a erradicação de epidemias tais como a dengue e gripe suína; além de reduzir quase a zero a pobreza os acidentes, a mortalidade infantil, o número de moradores de ruas, etc.

Não conseguiram acabar a violência, mas reduziu-se sensivelmente seus índices.

Os primeiros funcionários começaram a chegar. Porteiros, garagistas, serventes, mensageiros, seguranças, copeiras e faxineiros. A maioria ainda no vestiário preparando-se para assumir suas funções.

Conversavam amenidades.

Os homens o assunto principal era a grande vitória do time de maior torcida sobre o seu maior rival. Mas o mais discutido era o novo uniforme com que o time se apresentou. As listras horizontais rubro negras estavam mais largas dando ao conjunto um ar de sofisticação. A estrela dourada sobre a de prata aliadas as outras seis vermelhas, mostravam suas últimas conquistas. Todos elogiavam enquanto vestiam seus uniformes de trabalho.


O almoço de domingo ou as peripécias amorosas eram os assuntos das mulheres enquanto se maquiavam, penteavam ou se vestiam.

Aos poucos cada um foi se dirigindo a seu posto de trabalho, enquanto as vozes iam se dissipando no ar.

O relógio da Matriz mais uma vez se mostrava. As poças de água da chuva lutavam contra a força do sol que começava a esquentar a manhã daquele belo dia.

As nuvens assim como a lua já haviam se retirado para o merecido descanso, após noite tão conturbada.

Os pássaros já eram ouvidos na busca do café da manhã enquanto revolviam as folhas derrubadas pelo casal que passara a noite dançando.

Apenas um segundo após a sétima badalada a morte se faz presente mais uma vez com um novo e longo grito.

A ficha policial estava preenchida e entre outros dados se lia:

TESTEMUNHA: Swelem da Silva.

CONDIÇÃO: Primeira testemunha a ver a cena do crime.

IDADE: 28 anos

SEXO: Feminino

PROFISSÃO: Faxineira

RELATO: “Cheguei ao prédio às seis horas da manhã e, como faço todos os dias após bater o ponto, fui tomar café na copa dos empregados que fica no subsolo próximo ao vestiário. Às seis e meia troquei de roupa. Mais ou menos às sete horas da manhã subi as escadas para começar o meu dia de trabalho. Fui direto ao terceiro andar, onde inicio. Faço faxina no terceiro e segundo andares. Outros fazem a faxina dos demais. Eu sempre começo a limpeza pela sala da doutora Joana e venho limpando as outras salas e o corredor até chegar na escada. Quando abri a porta e vi aquela cena horrorosa. Dei um berro e saí correndo. Só fui parar na portaria, onde alguns colegas me seguraram e após um tempo, consegui me acalmar.”

OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES: Mesmo termos perguntado diversas vezes, a depoente sempre respondeu não ter mexido em nada e que nem chegou a entrar na sala onde se encontrava o corpo. A testemunha relata que, devido a diferença de horários, sua ralação com a vítima era estritamente profissional. Limitava-se na solicitação de limpezas esporádicas provenientes de derramamentos de líquidos, farelos de lanche ou similares; ou substituição de sabonete e outros insumos do banheiro.

Não havendo mais o que acrescentar a testemunha foi liberada com os avisos de praxe.

VÍTMA: Joana Speller

IDADE: 36 anos

PELE: branca, porém bronzeada sem marcas a considerar.

CABELOS: louros, longos e lisos. Estavam soltos e despenteados.

OLHOS: azuis,

ORIGEM: Santa Maria, São José.

PARENTES; Filha única de pais falecidos.

PROFISSÃO: Advogada

CENA DO CRIME: A vítima encontrava-se sem roupas, deitada sobre as mesmas, de costas para o chão e com a perna esquerda dobrada aproximadamente trinta e cinco graus. O braço direito estava sob as costas. Os sapatos estavam virados de lado próximos a janela.

DESCRIÇÃO DOS FERIMENTOS:
Foram sei ferimentos sendo dois (1 e 2) no braço esquerdo, dois (3 e 4) no peito, um (5) no abdômen e um (6) na altura do ombro:

1 – 3 cm de comprimento, 1 cm de largura e 4 cm de profundidade;
2 – 3 cm de comprimento, 1 cm de largura e 4,5 cm de profundidade;
3 – 3 cm de comprimento, 1,5 cm de largura e 2 cm de profundidade;
4 – 2,5 cm de comprimento, 1,5 cm de largura e 2 cm de profundidade;
5 – 3 cm de comprimento, 2 cm de largura e 7,5 cm de profundidade;
6 – 2 cm de comprimento, 1 cm de largura e 2 cm de profundidade.

ARMA DO CRIME: O formato e profundidade dos ferimentos indicam que foram feitos por um instrumento perfuro cortante. Não foi encontrado na cena do crime nada que indicasse ser esse objeto.

OBSERVAÇÕES: A forma como o corpo foi encontrado e a presença de resíduos líquidos em suas partes íntimas indica que a vítima fez sexo antes do crime e não há outros indícios que indiquem não ter sido consentido. Não foram encontrados preservativos ou suas embalagens nem detectada a presença de sêmen.
Foi encontrada uma garrafa de champanhe, vazia e duas tulipas usadas. Elas foram levadas ao laboratório para análise.
As impressões digitais recolhidas foram enviadas para identificação. Não foram encontrados outros itens tais como cabelos, fiapos de tecido, restos de elementos consumidos, etc. que possam ajudar no esclarecimento do crime. Após as fotos de praxe o corpo foi enviado ao Instituto Médico para autópsia.

DATA E HORA DO CRIME: As impressões iniciais mostram que o crime ocorreu entre às 23:30 h do dia 07 de julho de 1937 às 01:30 h do dia seguinte, data deste Laudo Técnico Preliminar.

ÚLTIMAS PROVIDÊNCIAS: A sala teve janelas e portas trancadas, lacradas e a chave colocada a disposição da polícia para novas averiguações caso necessário.

ENCERRAMENTO: Encerro esse laudo técnico Preliminar ao qual serão anexadas as fotos e resultados de análises a receber, para elaboração do Laudo Técnico Definitivo.

EMITENTE: Tenente Eduard Mood.

DATA: 08 de julho de 1937.

A tarde caia lentamente lá fora. O sol se encaminhava para mais um descanso.

As pessoas começavam a deixar seus afazeres profissionais com destinos distintos.

Alguns iriam para casa, outros para o tradicional HappyHour das quartas feiras. Mas todos estavam chocados com o que havia acontecido naquela madrugada tempestuosa.

Não era um acontecimento corriqueiro como o fora há anos atrás por isso, a notícia se espalhara com rapidez e a controvérsia das informações gerava discussões eloquentes.

Mood estava cansado. Os depoimentos colhidos no local, não eram elucidativos e os elementos colhidos na cena do crime, a princípio, não ajudavam muito.

Passou no bar da esquina da Chefatura de Polícia para um trago relaxante. Apoiou-se no balcão e ali ficou por minutos fitando o segundo copo, com tequila pela metade.

Os dados colhidos voavam sem nexo por sua cabeça.

A investigação havia tomado todo o dia, não houvera tempo de ouvir os mais próximos da vítima. Isso seria feito no dia seguinte e o preocupava porque estava dando tempo para o assassino pensar.

Após o terceiro copo, pagou, deixou o troco e despediu-se de Samuel, o barman.


Saiu pela porta e olhou para cima como se medindo a temperatura, ajeitou o sobretudo e o chapéu e sumiu na escuridão fria da noite em direção a sua casa.

Seus pensamentos já estavam em quem iria encontrar em casa.


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