sábado, 5 de janeiro de 2013

DELLETE ESSA IDEIA


É a terceira vez que, como pessoa física, compro um equipamento com a mesma empresa. Se considerar uma aquisição feita no ano passado pelo meu filho, por minha indicação e insistência, serão quatro e justamente na última consegui mais um problema entre tantos outros que empresas e pessoas, em plena era da Qualidade, com criação de Procedimentos para tudo quanto é lado, visando (dizem) a melhoria do atendimento, produto ou serviço e quando o cliente tornou-se (dizem isso também) peça importante na imensa cadeia de consumo em que se transformou o mundo.

E você acreditou? Bobinho.

É a febre da qualidade.

“O cliente tem sempre razão.”

Mas não conseguiram e a impressão que me dá é que quanto mais se planeja, quanto mais as pessoas param para pensar em melhorias e procedimentos, mais se aprimora tecnologias, mais se busca prazo, baixo custo e qualidade; menos se atinge os objetivos. Parece que quanto mais se estuda teorias, menos tempo temos para aprender na prática o simples, portanto óbvio.

Vejo no trabalho a juventude “nativa” chegando e os caras mal sabem para que lado ficam as coisas. Se os largarmos dentro de um navio com certeza não saberão sair. Alguns mal chegariam em casa sem um smartphone com acesso ao Google Maps.

Estamos estudando tanto que estamos “emburrecendo”.

Na etapa de compra, por motivos óbvios, fui maravilhosamente atendido por uma simpática representante que esclareceu minhas poucas dúvidas já que eu já conhecia os tramites da empresa. Foram poucos e maravilhosos minutos entre iniciar o pressionar das teclas do telefone até ser informado que receberia o produto no dia 24/12/12 (eles estavam com a produção adiantada), fornecer o número de meu cartão de crédito e desligar o telefone.

Tudo funcionou ao contento e não precisei falar com mais ninguém a não ser a simpática e eficiente moçoila.


Não foi uma compra desejada e sim por circunstâncias que não vêm ao caso neste momento. Por isso não estava ansioso em receber o hardware, mas aproximadamente 12 horas após desligar o telefone iniciou-se um processo que me fez lembrar a infância quando da época do meu primeiro Natal consciente.

Estava começando a ficar ansioso.

Entretanto, os verões passados me fizeram, a muito custo, aprender a esperar. Assim o fiz e em 26/12/12 retornei ao 0800-701-12-68 a fim de saber a quanto andava a minha compra. Já esperava ouvir:

“Senhor, pedimos desculpas, mas devido ao feriado houve um atraso na remessa de nossos produtos, mas estaremos (atualmente, o gerúndio tornou-se a marca registrada da incompetência) enviando seu equipamento em alguns dias.”

Essa seria uma desculpa aceitável e eu estava disposto a aguardar os “alguns dias” para receber o que já se tornara meu principal e mais esperado presente de Natal.

Mas a versão que ouvi foi ligeiramente diferente. Depois de passar por duas pessoas (só duas, sou um felizardo), fui obrigado a ouvir a seguinte pérola:

“Senhor, verifiquei o andamento de seu pedido e seu equipamento encontra-se em produção. Senhor. Foi constatada a falta de uma peça e estamos aguardando sua chegada, mas estarei fazendo (olha o gerúndio novamente) o possível para agilizar a montagem e liberação para envio ao senhor.”

Imaginei a linha de produção de uma das maiores empresas montadoras de computadores e periféricos do mundo, parada com meu futuro computador ainda aberto e os demais em seguida numa fila gigantesca aguardando a chegada da importantíssima peça, como se em um daqueles desenhos animados da minha infância.

Fui educado e paciente ao ouvir tal asneira, diante da qual agradeci e desliguei sem nem ao menos perguntar quantos seriam os “alguns dias”. Com certeza iria ter de ouvir outra e eu não estava a fim.

No dia seguinte estava lá, na minha caixa de Entrada de e-mails uma mensagem do nobre Supervisor (sim, é verdade, consegui falar com um. Pelo menos ele disse que era um), com seus dados de contato.

Os “alguns dias” se passaram e verifiquei que meu conceito de “alguns dias” é bastante diferente do da empresa a qual sou (era?) um cliente fidelizado (isso parece que não tem mais valor, fica o registro).


Em 03/01/13, próximo das 8 horas da manhã, liguei novamente. Passei por três pessoas (realmente estou com sorte), sempre me identificando com meu número de Cliente.

Engraçado, como a cada ano que passa deixamos de ser quem somos para virar um número. Trabalhamos como uns imbecis, construímos uma reputação, nos sacrificamos para juntar um qualquer, compramos um produto ou serviço e, pasmem, viramos um número. Viva a evolução! Mas tudo bem! É para sermos encontrados com mais facilidade. Até concordo, mas o problema não é esse, são vários números: cliente da loja A, título de eleitor, cliente do posto de gasolina X, do cartão de crédito Y, cliente da loja B, CPF, celular, conta e agência de banco, sócio do clube, telefone fixo, carteira de identidade, carteira do órgão regulador de sua profissão, etc. Ou seja, você perde sua identidade mesmo. Sem falar das senhas?


“Ok, virei um número! Sem problemas. Mas não podia ser apenas um para tudo?”

E o simpaticíssimo atendente do “Pós Venda” iniciou nossa cavaqueira:

“Senhor, o senhor solicitou o seguro, certo senhor?”

Trata-se de uma pequena peça, chamada “Lodjack”, que localiza o computador caso este seja roubado. Item oferecido pela simpática vendedora. Eu tenho certeza que não pedi “nadica” de nada além da configuração padrão. Se houver mais, não me lembro, foi aceito por sugestão da mesma.

E ele prosseguiu sem me deixar responder:

“Acontece, senhor, que detectamos uma incompatibilidade entre a pecinha localizadora com o Windows 8. Essa versão do sistema não aceita a peça.”

Senti-me o todo poderoso.

Se estivesse escrevendo logo depois de ouvir essa pasmaceira estaria dizendo que sou o fodão, o picão das galáxias, afinal eu duvido que você tenha se imaginado travando a linha de produção de uma poderosíssima montadora de hardwares e levado complicações à Microsoft ao mesmo tempo (acho que não preciso explicar quem é essa, certo?), é mais fácil ganhar na Megasena da Virada, mesmo com todas as falcatruas.

Todavia, como já se passaram alguns dias e minha ira está reduzida, não vou escrever esses nomes feios. Se o fizer, vou acabar perdendo a razão.

Como se nessa altura dos acontecimentos houvesse alguma.

E, pela primeira vez em um crescente processo de irritabilidade consegui falar:

“E quando é que vocês iriam me contatar? Sim, porque vocês têm meus dados em algum lugar por aí, certo? Iam esperar o Papai Noel voltar do Natal?”

Desculpem, mas não tenho mais paciência para tanta incompetência, tanta falta de respeito. Esses caras contratam mocinhas e mocinhos de vozinha delicada, todos educadinhos, te chamam de senhor(a) pra lá e pra cá dizem que “estaremos fazendo isso e aquilo” quando na realidade estão mesmo é te sacaneando.

FATO!

Sim porque se quisessem mesmo resolver os problemas não iam ficar te passando pra lá e pra cá como fantoches idiotas.

Mas foi soltando mais alguns cachorros que me dei conta estar falando com quem menos culpa tem. Pedi para falar com um superior.

E foi aí que me ferrei de vermelho, azul e branco.


Deixaram-me ouvindo musiquinha. Tenho certeza que muitos de vocês já estiveram nessa agradabilíssima situação.

Não sei quanto tempo ficaria aguardando. Desliguei em aproximadamente 20 minutos.

Voltei ao trabalho.

Passaram-se várias horas e no final do expediente tentei uma nova ligação. Mas já estava infectado. Não fui mal educado, longe disso, mas minha paciência havia ficado ouvindo a musiquinha.

Atendeu mais uma mocinha;

“Empresa “X” Jose das Couves boa tarde, em que posso ajudar?”

Esqueci o nome da mocinha.

Expliquei em poucas palavras e em velocidade acima do normal o ocorrido e pedi para falar com um superior que decidisse.

“Senhor, seu assunto é pós venda. Vou estar encaminhando o senhor para o setor responsável. Ok senhor?”

Sempre há um setor, mas nunca há um responsável.

Atendeu outra mocinha:

“Empresa “X”, Pós Vendas, Maria das hortaliças, boa tarde em que posso ajudar?”

Elas sabem tudo decoradinho. São umas gracinhas parecem menininhas e menininhos do antigo primário fazendo a peça do teatrinho do final de ano.

Pedi para falar com um superior que resolvesse.

“Com quem estou falando, senhor?”

“Geraldo.”

“Qual seu número de Cliente?”

“Desculpe já me identifiquei antes, quero falar com um superior.”

“Senhor, preciso saber com quem estou falando senhor, senão não vou poder estar passando o senhor para o primeiro ou segundo gerente, senhor.”

“Um é mais importante que o outro?”

“Senhor, sim, senhor.”

“Então passe para o mais importante.” “Senhor, preciso de sua identificação, senhor?”

Respondi rápido:

“664.nnn.nnn-nn, é meu cpf.”

“Senhor, não entendi senhor, preciso de sua identificação, senhor?”

Respondi menos rápido:

“664.nnn.nnn-nn, é meu cpf.”

“Senhor, não entendi senhor, preciso de sua identificação, senhor?”

Respondi menos rápido, mas ainda rápido: “664.nnn.nnn-nn, é meu cpf.”

“Senhor, não está havendo comunicação, senhor, esta ligação vai ser deslig...”

Respondi menos rápido, mas ainda rápido:

“664.nnn.nnn-nn, é meu cpf.”

“Senhor, não está havendo comunicação, senhor, esta ligação vai ser desligada por falta de comunicação”

“Pi, pi, pi, pi, pi, pi ...”


Antes de tudo, eles avisam que está gravando, como manda a lei, mas quando a situação começa a ficar crítica, eles devem ter um botão que os permite diminuir o volume de sua voz para parecer que a ligação caiu ou você, puto, desligou. Isso é para o caso de você pedir a gravação a fim de processá-los.

E a menininha, criada pela vovó ficou irritadinha. Ela não pode ser contrariada. A vida não pode ser injusta com ela. Ela é uma Profissional de telemarketing.

Não foi instruída para solucionar os problemas, foi treinada e muito bem treinada para irritar o pobre e incauto consumidor. Profissionais especialistas em tortura foram contratados para treinar essas mocinhas e mocinhos. Alguém duvida? Conheça uma e pergunte. São horas e horas de árduo treinamento.

E o pior, não podem ser contrariadas, você não pode perder a calma. Tem que ficar quietinho, sendo sacaneado, pois se ceder a tentação de libertar seus extintos...

“Pi, pi, pi, pi, pi, pi ...”

Você pode estar com toda a razão do mundo, mas mesmo depois de estar estando (gostaram dessa) sendo sacaneado por horas; se sair da linha ...

“Pi, pi, pi, pi, pi, pi ...”

Portanto, comporte-se, se não...

“Pi, pi, pi, pi, pi, pi ...”

E você, O CLIENTE (KKKKK!), não tem como fugir. Esses pseudos profissionais estão espalhados por todas as empresas fornecedoras e/ou prestadoras de serviço. Não vai demorar muito para estarem estando criando uma Faculdade de Profissional de Telemarketing. Se é que não já existe.

Senhores, é preciso uma providência. Os valores estão mudando e o que era bom exemplo antes, hoje perdeu a importância para os craques do futebol beberrões de noitadas sem fim, ou os MCs das belas músicas com suas educativas letras de Funck.

A paz, a ordem, os bons costumes e boa educação perderam a vez para os chefes de gangs lícitas ou ilícitas. Os políticos perderam a vergonha e com eles a Justiça perde forças numa luta inglória com os outros dois poderes para condenar bandidos mais que conhecidos eleitos por ignorantes que de alfabetizados mal sabem escrever o nome e só sabem interpretar um cartão da Megasena, do Bolsa Família ou do carnê de eletrodoméstico.

Essa história de cliente ser importante é pura balela. Só serve na hora da compra. E com a baixa qualidade dos produtos e serviços, a tarefa de reclamar os seus direitos está ficando cada vez mais necessária, porém, cada vez mais difícil.

Não adianta recorrer aos órgãos reguladores, estes estão recheados de incompetentes que não querem nada. Mas também do que ia adiantar se a maior das justiças pena para prender bandidos conhecidos, o que farão por você pobre “Números”?

Não sei se falta muito ou pouco, mas vai chegar a hora em que voltaremos aos tempos do vale tudo e não estou falando de MMA, que para mim também exerce sua influência negativa.

É preciso entender que se você chegou até aqui neste texto é porque tem condições de discernir, sim porque histórias como esta aí em cima, têm aos montes.


Mas você chegou até aqui, então faz parte de apenas 6% da população deste maravilhoso país com condições de lobrigar. Mas isso não vale nada, ainda mais se levarmos em consideração que entre esses 6% tem muito safado e sem vergonha. E num cenário onde quem decide mal sabe ler e escrever, interpretar então... nem pensar; não nos resta muitas opções.

E como são esses coitados (sim coitados, muitos são honestos, têm caráter, mas não sabem o que estão fazendo) que decidem, a tendência é, com o tempo, tê-los no poder. E aí meus caros vai ser phoda! Você vai ter que dividir sua reluzente SUV (4x4 que nunca saiu da cidade) com eles. Ah! Vai!

Lembrem-se, ainda não chegaram ao poder e já faz algum tempo que estão invadindo terras, matas e construções, pelo Brasil à dentro e refinarias pelo Brasil à fora. E o pior, tudo com a aquiescência dos que lá estão

É preciso mostrar a esses 94% que o que estão fazendo vai acabar voltando contra eles. Sim, pois para os que ainda não entenderam, não é só a terra que é redonda, a vida também o é.

Você faz parte de uma cadeia em que suas ações, por mais insignificantes que sejam impactarão outro e as dele outro; assim por diante até a reação bater no vidro blindado de sua SUV em alguma esquina do país.

É preciso fazer com que os motoristas que fecham os cruzamentos entendam que em outro momento estarão em situação inversa, principalmente os de ônibus e taxis que passam horas nas ruas sob o sol e chuva escaldantes.

É preciso tirá-los das profundezas da ignorância e fazê-los entender que Bolsas Assistenciais, Crianças Esperança e ONGs da vida não devem ser regra e sim exceção, E que devem obter seus bens móveis e imóveis através de seu trabalho e que este seja honesto.


Se assim não for e eles continuaram decidindo pelos mesmos desprezíveis políticos continuarão vivendo nas encostas sob o risco de rolarem a cada chuva mais forte. Vão continuar vivendo em favelas, que nunca deixarão de ser favelas só porque as pseudo urbanizaram, puseram um teleférico, colocaram uma UPP e organizaram alguns shows com artistas em decadência.

É preciso fazê-los entender que fazer filho e trepar são atividades distintas, porque Bolsa Escola não sustenta ninguém.

Entretanto, nós dos 6% temos nossa parcela de responsabilidade, por exemplo: há os que acham que passar em concurso público é a solução dos seus problemas. Não caras pálidas, não é! Você vai passar (se é que vai passar) e ficará feliz por algum tempo. Depois verificará que o salário e/ou condições não são suficientes e vai começar a amolecer, vai começar a faltar, vai começar a se vender, vai começar a pegar emprestado material e/ou serviço alegando salário indireto e isso impactará em nossos impostos ou na qualidade dos serviços a que temos direito, inclusive você.

E para seu conhecimento, seu canalha, eu não tenho culpa de suas escolhas. Você que as fez arque com todas elas ou mude de ramo.

Você tem direito, porém procure não usar a sua maravilhosa SUV 4 x 4 para andar a 40 km/h na cidade. Mas se por ventura o fizer, faça pela pista da direita. É simples e não dói nadinha.

É preciso mostrar para os profissionais de telemarketing que eles também são consumidores, também tem celular, eletrodomésticos, computadores, televisão a cabo e tudo o mais que nos obriga a aturá-los com frequência. Eles precisam entender que se chegamos ao ponto de ficar irritados e mal educados é porque eles não fizeram o que lá estão para fazer. Não agilizaram o atendimento. Estamos reclamando? É porque não fomos atendidos como prometido na etapa de aquisição do produto ou serviço. Eles precisam perceber que como representantes da empresa, são a própria empresa e devem sim ouvir pacientemente cada reclamação e providenciar a solução o mais rápido possível. Se assim o fizerem, não serão agredidos, ao contrário, receberão elogios como fiz em raras vezes em que fui bem atendido.

Vou ser honesto e dizer que não faço a menor ideia de como fazê-lo, mas é preciso achar uma maneira mostrar aos 94% que decidem que não dá mais para continuar como está.

Neste momento, a mim só resta ver se o produto que deixou de ser presente de Natal, passa a ser de aniversário, porque para o dia 10/01/13, faltam apenas poucos dias.

Portanto, meu caro leitor, se desejar comprar algo ou serviço, pense direitinho. Verifique a essencialidade da coisa; você não precisa de uma 4 x 4 para andar na cidade à 40 km/h.

Sendo assim, eu sugiro:



quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

5º CAPÍTULO - OLHOS NEGROS



Duas meias-luas, uma de mamão outra de melão, dois ovos mexidos com bacon, um suco de goiaba, três torradas de pão integral passadas em geleia de damasco.

Esse foi seu café da manhã. Preparado com esmero. A mesa estava posta com um simples, mas bonito jogo americano trançado em palha do México. Lembrança de sua segunda lua de mel.

A ausência da esposa permitiu o bacon e a geleia.

Estava saboroso, mas pensar nas atividades do dia que se iniciava não o deixavam degustar tais iguarias.

As perguntas começavam a ocupar seus pensamentos:

“Quem? Como? Por quê?”

Sabia apenas onde; pouco para tirar conclusões e não vislumbrava um caminho a seguir nas investigações.

Terminou seu desjejum e olhou para o relógio. 06:30 h, indicavam os ponteiros de seu Ômega de fundo branco, hoje amarelado cujos ponteiros, números, caixa e corrente de ouro reluziam. Era um lindo relógio de bolso. Presente que passava pelas mãos masculinas da família por gerações. Ele não tinha como seguir a tradição.


Era cedo, a ansiedade fora sua companheira na noite e o fizera acordar antes do despertador.

Sem ter o que fazer, iniciou a lavagem da louça, já estava acostumado ele sempre a ajudava nos afazeres do lar. Foram dois pratos, um copo, talheres e a frigideira; além da louça do jantar da noite anterior. Tudo repousava no secador menos o copo que por um raro descuido quebrou-se e agora seus cacos descansavam no lixo, embrulhados em algumas folhas de jornal velho.

O cedo da manhã previa um dia ensolarado, porém frio como o anterior e o tilintar do enfeite da janela mostrava uma brisa ainda gélida.

Boris ergueu as orelhas, levantou sua enorme cabeça negra e saiu em disparada ao ouvir, lá fora, um conhecido som seco. Passou pela abertura da porta como um raio e logo surgiu de volta com o jornal entre os dentes para entrega-lo mansamente nas mãos de seu dono que já aguardava ansioso para ler o que diziam do caso.

A primeira página estava dividida. A metade superior descrevia o longo julgamento que culminou com a condenação do serial killer que tinha tido como advogada de acusação a vítima do brutal assassinato ocorrido ha duas noites; notícia estampada na parte inferior.

O tempo tornou-se curto diante da avidez com que as notícias eram lidas e ele teve que deixar o jornal desarrumado sobre a mesa e fazer apenas um pequeno carinho em Boris, para sair apressado em direção a sua BMW.

Passou a mão carinhosamente sobre o tanque de gasolina e depois deu uma leve batida com a mão espalmada no banco cinza escuro enquanto um leve sorriso escapava devido a imagens de suas viagens quando adolescente, pelas belas estradas do país, recuperadas de suas memórias.

Seguiu a pé pela calçada na direção contrária a da noite anterior.

Os poucos minutos ganhos devido ao excelente trânsito daquela manhã o permitiram admirar as imponentes colunas do térreo, em granito preto, que guarneciam o enorme portão de metal dourado que formavam o conjunto mais significativo daquela fachada.

Autorizado subiu os três andares agora admirando a arquitetura do interior o que não pudera fazer 48 horas antes.

Sentou-se em uma cadeira lateral da recepção e consultou seu ômega, enquanto aguardava autorização para entrar.

Dra. Helena levantou-se sem demonstrar emoção ao vê-lo sob a aduela de madeira maciça trabalhada que guarnecia a porta ora aberta.

Tirou o chapéu:

“Bom dia!”

“Bom dia, tenente! Sente-se. Deseja algo? Café? Água?”

E apertou um botão que havia no canto sobre a mesa.

A porta se abriu novamente enquanto ele respondia:

“Café e água, por favor.”

“O mesmo para mim, por favor.”

“Sim senhora.”

Respondeu suavemente, porém com a voz triste, a copeira que acabara de entrar.

O ar não estava nada agradável, não pela pesada decoração dos corredores e salas, mas sim pelo ocorrido duas noites antes. Mood reparou que as pessoas andavam tristes pelos corredores. Já havia passado por isso antes e sabia que essa atmosfera se traduzia no quanto a vítima era querida.

Ela solicitou um momento antes de começarem. Enquanto ela finalizava alguns afazeres ele correu a sala com seus experientes olhos.

Ao contrário do que ele já havia visto no prédio, aquela sala era diferente. Clara, não só pelas janelas cujas cortinas estavam totalmente abertas quanto pelas paredes brancas com o teto gelo. Os móveis eram de madeira maciça com acabamento escuro. O tapete cinza escuro e a estante, com muitos livros, tinha os montantes na mesma cor dos móveis, porém, com fundo branco. A poltrona em que estava confortavelmente sentado tinha a mesma cor do tapete. Eram duas. Alguns quadros mostravam formas disformes em tons fortes e alegres, dando calor ao ambiente. Sentia-se bem ali. Ele analisava a luminária composta por dois cones vermelhos opostamente direcionados, absorto em seus pensamentos quando ela o interrompeu:

“Então tenente, imagino que vamos falar sobre o falecimento da doutora Speller ...”

Vendo que estava perdendo o domínio da situação ele interrompeu-a:

“Sim doutora Muller. Preciso de algumas informações e gostaria que não ocultasse ou deixasse de falar o que sabe. As vezes o que pensamos não ser relevante na realidade pode ser a peça esclarecedora de uma grande história.”

“Sem problemas tenente, realmente não acho que tenho boas informações para o caso, mas vou atendê-lo da melhor forma possível. Por onde deseja começar?”

“Gostaria de saber quando e como foi a primeira vez que a viu?”

Sem pestanejar ela iniciou seu relato.

“Bom, eu já trabalhava aqui quando ela foi contratada. Confesso que a primeira impressão não foi das melhores. Ela vinha do interior, vestia-se bem, contudo com roupas ultrapassadas. Os cabelos estavam presos, mas via-se que não eram bem tratados. Não que tenha algum preconceito, porém era uma desconhecida para nós e o senhor sabe que experiência e tradição nessa atividade são primordiais. Com o tempo ela foi mostrando seu valor profissional e sua postura perante todos nos conquistou e aos sócios do escritório. Em pouco tempo ela atingiu a posição que tinha quando ocorreu a tragédia.”

Mood estava atento a seus movimentos. Mãos e as vezes braços eram utilizados enquanto falava, entretanto com harmonia e graciosidade. Os olhos moviam-se com certa frequência, mas sempre terminavam nos seus ao final de cada frase.

“Pelo que vi no tribunal, a senhora estava muito bem preparada para o caso do “Serial Killer”. Sua atuação pode ser classificada como perfeita, principalmente a estratégia de se valer quase que exclusivamente das provas técnicas. Poucos as consideram tanto e o fizeram de forma tão brilhante como a senhora.”

Em um segundo ele reparou o que tinha feito. Tímido, havia se rasgado em elogios e sentia-se estranho, pois era profissional a extremo, que não se permitia desviar de sua linha de raciocínio quando arguia alguma testemunha. Ele ainda fitava seus negros olhos quando ela baixou a cabeça com a face rubra:

“Ora! Por favor, tenente! Fiz o que estudei para fazer. Acredite, não foi fácil. Quando nos contrataram para representarmos as famílias das vítimas fui designada a fazer parte da equipe da doutora Joana que seria a Advogada Líder. Eu seria a assistente principal e como o senhor já deve ter sido informado éramos sete.”

Ele a fitava atentamente, buscando detalhes nas entrelinhas de cada frase proferida por ela.

“Não havia como não estar bem informada, participei de todas as etapas do processo, pesquisas, diligenciamentos, investigações e tudo o mais para juntar as provas necessárias à buscar a condenação do Réu.”

Ela havia se refeito dos efeitos do elogio quando a copeira voltou com o solicitado. Também havia biscoitos em um pote sobre a bandeja. Bebeu dois goles de água, mexeu o café cuja fumaça mostrava a alta temperatura e o consumiu também em dois goles. Aguardou três segundos absorvendo o sabor adocicado da bebida para então, continuar seu relato: Antes, segurando um cigarro:

“Importa-se?”

Ele fez que não com a cabeça e ela o acendeu.

“Era seu primeiro caso como líder e a doutora Joana se revelou excelente nesta função. Sabia muito bem detectar o melhor de cada um de nós e se utilizava disso muito bem em prol do bom andamento dos trabalhos. Paciente, ouvia a todos e mesmo quando convicta buscava na equipe uma possível opinião que a fizesse mudar e não se furtava em fazê-lo quando convencida.”

Doutora Helena permanecia tranquila, se mostrava segura, sem a ansiedade tradicional de quem estava sendo sabatinada. Parecia que havia um ar de prazer em seu comportamento.

Ele continuava fazendo suas anotações. Não gostava do café muito quente.

“Joana ... era justa. Não havia distinção ao lidar com as pessoas, principalmente os membros de sua equipe, com quem sempre que podia dividia os elogios. O mesmo fazia quando as coisas não aconteciam como ela desejava, cobrava com firmeza sem perder a suavidade, educação e elegância adquirida com o passar dos anos na cidade grande.”

Os anos vividos na elucidação de casos de diversos tipos não deixaram passar em branco o suspiro proferido por ela ao citar o nome da vítima. Isso foi devidamente registrado em suas anotações. O café, ora morno, começou a ser sorvido em curtos goles. Foram três. Após o quarto e maior deles ele descansou a xicara vazia sobre o pires que a aguardava sobre a mesinha lateral preta. Ambos de porcelana branca com motivos florais em alto relevo e uma listra dourada na borda. Lembrou-o sua esposa, Adelaide.

“Estou vendo que a senhora tinha um apreço especial pela doutora Joana, talvez algo acima do profissional. É possível?”

“Não posso esconder que minha admiração possa ser um pouco acima sim, mas lhe garanto ser apenas por seu desempenho profissional e caráter.”

Desviou o olhar para a janela e prosseguiu:

“A história mostra o que sofremos para chegar onde estamos. Sabemos que muitos homens e mulheres maus ainda sobrevivem em escaramuças diversas. A doutora Speller era um exemplo de correção. Quem sabe não é por aí?”

Ele a fitou por demorados quatro segundos, e perguntou:

“Porque diz isso doutora? É uma afirmação?”

“De certo fez algumas averiguações iniciais e sabes que o crime é a área de atuação que mais me identifico. Foram inúmeros casos desde que me formei. Não é difícil pensar em motivos.”

“Desculpe-me doutora, pode esclarecer, especificamente o que quer dizer?”

“Tenente Mood, não estou querendo atrapalhar seu trabalho, mas...”

“Prossiga. Não se preocupe.”

Ele queria seus pensamentos e não a enrolação.

“A doutora Speller veio do interior e as histórias dizem que, desde os tempos de estagiária, atuou em vários processos que acabaram por condenar muitos dos chamados Coronéis sobreviventes daqueles tempos sombrios. Soube que teve participação ativa nesses casos e que exatamente por isso foi convidada a trabalhar conosco.”

“Pode citar suas fontes?”

“Apenas conversas de corredor. Nunca procurei saber ao certo, não tinha por que fazê-lo. Mas agora, com o acontecido, não é difícil somar A com B.”

Mood tinha um furação em sua cabeça e os olhos negros da doutora Muller sabiam disso.

“Vou pensar no que disse.”

Se recompondo. Sabia que não ia tirar mais nada desse imbróglio agora. Queria deixa-la pensar mais no que disse.

”A senhora poderia me contar se a doutora Joana tinha algum hábito que poderíamos chamar de ... estranho?”

“Tenente, como falei antes, nosso relacionamento era estritamente profissional. Mesmo nos escassos eventos do escritório não tínhamos muito contato.”

“Que tipo de eventos?”

“Comemorações por ter vencido alguma causa importante, como a de ontem, ou conquistado um bom cliente, festas de fim de ano, Natal ou aniversários, essas coisas.”

“Mesmo não tendo contato social, alguma vez viu ou ouviu conversa que possa ter despertado na senhora uma sensação estranha? Algo que pudesse sugerir uma ligação, digamos, diferente ou suspeita?”

“Conheço dessas coisas, afinal nosso forte é a área criminal, entendo o que está dizendo e onde quer chegar, porém, posso afirmar que não havia nada suspeito nas atitudes da doutora. Ela era muito discreta em suas coisas pessoais. Se havia algo, passou despercebido por mim.”

“Conheceu pessoas do relacionamento social ou alguém da família da doutora Joana?”

“Não tenente. Como disse antes nossa relação era apenas profissional.”

“Doutora, uma última pergunta.”

“Sim.”

Ela se ajeitou na cadeira, mais uma vez deixando escapar um leve sorriso.

“Onde a senhora estava na noite em que aconteceu o crime?”

“Não hesitou e como se já esperasse a pergunta, respondeu:

“Tenente, aqueles eram os últimos dias que antecederam o fim do julgamento. Havíamos trabalhado muito na busca de provas e evidências. Tinham sido dias de trabalho intenso organizando as coisas entre as audiências... estas estavam sendo extremamente desgastantes devido a expertise dos advogados de defesa...”

Ele a interrompeu.

“Sim, mas a senhora, a assistente principal, deixou-a só, logo na noite anterior ao último dia do julgamento?”

“Como estava dizendo, tenente, estávamos todos muito cansados, mas eu estava disposta a permanecer junto dela até quando necessário. Não fui a única que insistiu, mas ela nos convenceu para que fossemos para casa. Iria fazer uma última leitura em suas anotações e então dormir no escritório.”

Seus olhos correram em direção a segunda poltrona onde descansava uma valise de viagem, fechada. Desviou os olhos e continuou:

“Não nos restou opção a não ser deixa-la só em seus pensamentos. Fui para casa, tomei um banho, comi alguma coisa e fui dormir.”

“Alguém pode comprovar sua história?”

“Infelizmente não. Moro só e o prédio não tem porteiro noturno. Algum vizinho pode ter escutado minha chegada, porém não posso afirmar. Mas saímos, quase que todos da equipe, juntos, do prédio. O motorista do taxi, talvez, mas como encontra-lo?”

“Vai viajar doutora Muller?”

Olhando para a valise.


“Não tenente, temos o habito de ter uma valise no escritório para alguma emergência. Essa, por exemplo, tem as roupas e acessórios que usei ontem no tribunal.”

E passando a mão no colar de pérolas que ornamentava seu lindo pescoço:

“Estou levando para casa a fim de renovar.”

“Mulheres. Essas lindas mulheres.”

Ele pensou e continuou:

“Ok doutora, agradeço seu tempo e gostaria de poder contatá-la novamente caso necessário. Sei que vocês, advogados, costumam viajar bastante, peço apenas que se for deixar a cidade ou país informe seus contatos, hotel, local da reunião ou outro evento. Essas coisas desimportantes que a senhora já deve saber.”

Sorriu enquanto ouvia a resposta que já esperava.

“Ok tenente! Conheço os trâmites, fique tranquilo que estarei ao alcance. Não há nada programado neste sentido para esses dias. Qualquer mudança na agenda eu mando informar.”

Apertaram as mãos por um segundo além do normal enquanto os negros olhos da doutora Muller cruzavam com os seus.

“Sam! O de sempre.”

Samuel trouxe a costumeira dose de tequila que foi sorvida em um único gole e diluída em seus pensamentos. Estes estavam estranhamente divididos entre as informações colhidas e algo que não entendia direito, portanto, sem sentido.

Reparou que já estava no terceiro “shot” e atribuiu a ele esta sensação estranha, mas agradável.

Após o banho gelado, um sanduiche fez as vezes do jantar. Pão esquentado no forno, manteiga, queijo e salame hamburguês, seu preferido. O suco natural de laranja, sem açúcar, ajudou no sabor completando o “jantar”.

Estava cansado e ainda sob resquícios da tequila. Acarinhou Boris e deitou-se para se perder entre seus pensamentos, sensações e álcool.