Fim de tarde.
O sol caindo de sono após um dia movimentado, procurava entre as montanhas do horizonte um local para se deitar e recuperar as energias, mesmo sendo outono.
O ano? 1937.
O vento bailava platonicamente carregando no colo as poucas folhas secas e grãos de sujeira que insistiam em permanecer sem rumo pelas ruas quase desertas.
A temperatura caía a medida que os segundos passavam. O tic tac do relógio da torre sul da igreja matriz se fazia presente cada vez mais forte a cada grau subtraído no termômetro da farmácia da esquina.
Era o silêncio da noite chegando sorrateiramente tal qual uma onça faminta espreitando sua preza.
No mesmo ritmo o orvalho, como fazia todas as noites, perdia sua timidez e se mostrava sobre as amuradas e calçadas da cidade.
O corre corre do dia dava espaço a noite cujo véu se tornava mais negro e pesado a medida que as nuvens de tempestade se acumulavam.
Ela ainda permanecia em sua sala. Absorta entre os diversos volumes de livros e processos que faziam sua enorme mesa, esculpida em madeira de lei escura, parecer uma trincheira de guerra.
Era um famoso escritório de advocacia e por isso ocupava todo um andar daquele prédio de arquitetura centenária.
Apenas quatro andares servidos por uma fria e escura escada de granito preto e corrimão trabalhado em latão dourado. Era larga no térreo e ia se estreitando a medida que atingia a recepção do primeiro andar. Daí em diante se mantinha com o seu metro e meio de largura.
As enormes e antigas luminárias, de beleza inigualável não eram suficientes.
Deixavam, para alguns, uma sensação de insegurança e para outros, medo. Sensações quebradas apenas pelo barulho do movimento das pessoas que transitavam a cada dia de trabalho.
A fachada em argamassa industrial possuía ornamentos diversos que mostravam a irregularidade do ecletismo das várias fases ali representadas e era cinza.
As imponentes colunas do térreo, também em granito preto, que guarneciam o enorme portão de metal dourado formavam o conjunto mais significativo, mas eram as gárgulas que, como guardiões, ocupavam a empena do último andar, que faziam as sombras que aterrorizavam os poucos que ousavam transitar pela rua em hora avançada.
Com paredes forradas de madeira e piso de tapete, ambos mofados, o longo corredor espremido pelas diversas salas que compunham o terceiro andar, tinha no seu final a única sala ainda ocupada.
Escassos relâmpagos eram vistos no céu, em uma tentativa infrutífera de dar alguma luz a aura de medo que se formava.
As árvores quase despidas pela força do outono dançavam como esqueletos, ao sabor do vento que se tornava cada vez mais forte.
Seus cabelos dourados que emolduravam o rosto esguio estavam levemente despenteados pelo passar das horas. Os lábios ainda vermelhos sob o nariz afilado e olhos azuis eram sistematicamente umedecidos pela língua a cada virar de página do enorme volume do processo objeto do estudo do momento.
Lá fora os personagens noturnos começavam a se mostrar sem receio. Eram mendigos, drogados, bêbados e pequenos ladrões, entre outros moradores de rua.
Alguns se escondiam do frio como podiam, sob as marquises dos prédios, cobertos com panos ou jornais velhos. Outros perambulavam revirando o que podiam ou a ermo ao sabor das drogas pelas quais cometiam seus delitos.
Tinham origem no mundo ou em alguns quarteirões vizinhos movimentados pelo embalo dos restaurantes, bares ou outros estabelecimentos de diversão, onde esmolavam importunando os fregueses.
Mas aqueles não!
Àquela hora era um conjunto de quarteirões desertos que faziam parte da periferia do centro da cidade que horas antes fervilhara ao sabor da economia.
O lixo já estava espalhado nas calçadas pelos mendigos famintos.
Alguns poucos cães uivavam e latiam em intervalos incertos.
Vestia um conjunto verde escuro cujo paletó pendurado atrás da porta passara o dia sobre uma branca blusa de seda com gola de renda da mesma cor.
Desabotoados, os dois primeiros botões deixavam a mostra um colar de pérolas e parte de seus rijos e belos seios ainda deliciosamente queimados pelo sol das férias passadas em um país tropical, semanas antes.
A saia comportada era justa o suficiente para marcar a sua cintura e deixar transparecer as formas de suas longas e belas pernas. Esse conjunto de atributos fazia seu corpo ser desejado por muitos, conhecidos ou não.
O cintilar de cada relâmpago era dissimulado pelas cortinas e não a incomodavam.
O vento aumentava sua fúria e já começava a interrompê-la.
Levantou-se e sem esboçar reação devido ao estágio de transe em que se encontrava pela história do processo; fechou a janela e retornou ao que a consumia.
As gotas do orvalho aumentavam de tamanho transformando-se em chuva. A dama que o vento aguardara e passava a conduzir em sua interminável dança. Juntos transformaram-se em tempestade como se em êxtase e iniciaram um ritual de açoite à vegetação, paredes e janelas do centro e bairros vizinhos; iluminados pelos clarões emitidos pelos raios que agora discursavam em forma de trovões.
Os gatos, que há pouco se divertiam correndo atrás dos ratos a fim de se alimentar, já estavam escondidos sob os carros estacionados. Os ratos que sobraram da caçada encontravam-se salvos nos bueiros e galerias mal cheirosas, junto com as baratas.
O carro cinza chumbo parou do outro lado da calçada. Apagou os faróis e aguardou por alguns segundos e sem mais nem menos partiu em direção a avenida principal sumindo sob o véu da chuva que permanecia forte.
As dez badaladas do relógio da torre sul da igreja matriz quebraram o ritmo da noite mostrando a hora.
Sem muito mover a cabeça, ela ergueu os olhos fitando o relógio na quinta prateleira da estante cheia de livros a sua frente. Estava sete minutos atrasado. Ela sorriu discretamente e voltou os olhos para o texto.
Contava a história de vários assassinatos cujos familiares das vítimas eram clientes do escritório e ela fora designada para representa-los. Para isso contava com o apoio de sete profissionais: dois advogados, três estagiários, uma secretária e um ex-policial.
Cada um tinha suas peculiaridades:
Um dos advogados, já de certa idade, tinha sido um dos mais renomados do país, mas era suspeito de ter participado de um golpe milionário até então não esclarecido e para não aumentar as suspeitas continuava advogando como consultor sob a desculpa de não querer se aposentar.
O outro era outra, uma belíssima morena de olhos negros e corpo escultural. Misteriosa, simpática, solícita e excelente profissional que pertencia aos quadros da empresa há sete anos. Mas nutria certo ciúmes de sua chefe, ha menos tempo na empresa, por se achar tão ou mais capaz. Apesar de seu profissionalismo, nunca tivera clientes para representar.
Como todos os estagiários, o casal deste escritório era tratado quase como escravos. Além das tarefas normais da profissão eles eram obrigados a cumprir outras como servir café, comprar o lanche quando havia trabalho noturno, etc. Mas tinham uma especial consideração a sua chefe pela deferência com que eram tratados por ela.
Apenas ela os tratava com decência.
A secretária era uma senhora muito simpática e eficiente. Bastante ágil em detrimento de sua avançada idade. Nutria por sua chefe um ódio mortal em função de um caso em que havia sido condenada injustamente a sete anos de reclusão. Sua chefe havia sido a advogada de acusação. Não era reconhecida devido as inúmeras plásticas que fora obrigada a fazer consequência do crime do qual havia sido acusada.
Aposentado fazia sete anos, o policial havia sido o exemplo da corporação, com várias condecorações pelos serviços prestados. Em seu penúltimo caso havia matado o assassino de uma jovem após ter se rendido. Ele não sabia, mas o assassino era amante de sua atual chefe e ela sabia das condições em que ele havia sido morto.
Os sons emitidos pela noite foram sumindo com o andar dos ponteiros do relógio. Os cachorros e gatos dormiam assim como os demais habitantes das ruas que se tornaram desertas e frias.
Permanecia apenas o bailar do vento com a chuva. Até o incessante som do tic tac do relógio da torre sul da matriz era inibido por esta dança.
Os raios já não eram vistos nem ouvidos.
Tudo parecia normal para uma tempestuosa noite de outono.
O vulto permanecia encostado na esquina, sob uma pequena e velha marquise que além de abriga-lo parcialmente da chuva, o fazia invisível.
Olhou para o relógio, fez cálculos por segundos, jogou fora o resto do segundo dos cigarros que fumara desde que havia saltado do carro cinza chumbo trinta e sete minutos antes e iniciou sua caminhada em direção aos fundos do prédio de argamassa cinza.
Sem fazer barulho ele danificou e abriu a fechadura da porta de ferro corroído pelo tempo e humidade. Encostou-a permanecendo do lado de fora.
A silhueta do vulto mostrava seus esguios metro e setenta e sete centímetros.
Vestia camisa, preta sob um longo sobretudo, sapatos e meias da mesma cor. Luvas de couro, também pretas, com as iniciais JS gravadas em baixo relevo no dorso, cobriam suas longilíneas mãos. Seu rosto estava coberto pela sombra do capuz.
Deu a volta até chegar à frente do prédio. Subiu os três degraus de acesso e com a chave cujo chaveiro de ouro reluziam as mesmas letras JS, abriu o enorme portão de metal dourado ladeado pelas colunas de granito preto.
Olhou rapidamente para os dois lados da rua há muito deserta e entrou fechando mansamente o portão às suas costas.
Ele estava calmo. Não era a primeira vez que se encontrava nesta situação. Havia planejado minunciosamente todos os passos e não vislumbrava nada que pudesse atrapalhar seus planos.
Mas permanecia atento. Não poderia vacilar.
Correu os olhos pelo ambiente como se procurando algo. As poucas luminárias acesas prejudicavam a visão. Essa falta de iluminação aliada ao piso e paredes escuras davam ao imenso hall de acesso uma atmosfera de insegurança.
Não havia quadros. Apenas um sofisticado, porém velho e mofado papel de paredes com tema floral decorava o ambiente.
O duplo pé direito do ambiente, aproximadamente quatro metros e meio, fazia com que seus passos ecoassem, intensificando a sensação de medo.
Do lado direito o balcão de alvenaria com detalhes em granito e latão dourado era o elemento de destaque.
Do outro lado o elevador com portas pantográficas aguardando o retorno da empresa de manutenção para voltar a funcionar.
Estava parado havia sete meses.
Os degraus foram consumidos um a um enquanto ele contava os segundos planejados.
A chuva caía como se chorando a ausência do vento que há pouco a deixara só na pista de dança. As lágrimas eram grandes, constantes e pesadas o suficiente para produzir um som forte e alto. Estava desesperada.
As poças já eram enormes e pareciam afogar grande parte das ruas e elementos urbanos ali presentes.
O vulto, como planejado, chegara à porta da última sala do corredor do terceiro pavimento exatamente às vinte e duas horas e cinquenta e sete minutos. E ali permaneceu imóvel.
Os gatos, mesmo correndo o risco de se molhar, haviam escalado muros para se abrigar da chuva torrencial, encolhidos sob objetos diversos.
Ela ainda absorta em sua leitura e anotações já mostrava sinais de cansaço. Mas não podia se entregar ao capricho de um simples cochilo. A audiência decisiva para aquele processo seria no dia seguinte.
Sobre a confortável poltrona ao lado repousava sua valise com as roupas e assessórios que usaria neste evento. Um discreto taier cinza chumbo, uma blusa cinza claro, meias pretas assim como a ousada lingerie e sapatos salto dez. a maquiagem seria discreta como o perfume.
Atrás da terceira porta à direita de quem adentra o corredor estava o banheiro aonde iria se trocar, se maquiar e se pentear.
Enquanto, com um leve movimento da cabeça, retornava os olhos para seus textos, com um leve sorriso, se assustou com a súbita abertura da porta segundos após a décima primeira badalada do relógio da torre sul da matriz.
Mais uma vez levantou a cabeça, desta o fez rapidamente e o brilhante sorriso demostrava que gostara do que vira.
Seus olhos brilharam e seu coração disparara ao reconhecer sua secreta paixão.
O terceiro e demais botões da camisa de seda foram arrancados bruscamente assim como o resto de suas vestes. Ela se entregou aos carinhos do vulto após este também se despir e mostrar seu corpo.
Amaram-se como sempre, com fervor e amor indescritível, acompanhados de leves doses de champanhe gelada que já os aguardava entre pedras irregulares de gelo em um balde de prata.
Foram trinta e sete minutos de sexo intenso após os quais conversaram amenidades deitados sobre suas roupas agora estendidas a fim de protegê-los do frio do piso.
Ela se virou e ele levantou-se sorrateiramente.
As badaladas do relógio da torre sul da Matriz já estavam no ar. Ele tirou do congelador do frigobar junto ao sofá que havia sido um dos protagonistas de seu amor, uma ponteira moldada em gelo.
A chuva, chorosa, havia ido embora. O frio já consolidado que com a saída do dos bailarinos seria o guardião da noite.
As nuvens se afastavam e a lua cheia era vista ofuscando as estrelas que ousavam aparecer. Pequenos morcegos iniciavam sua caça enquanto poucas e afinadas corujas faziam seu recital.
Os gatos deixavam seus esconderijos, assim como poucos ratos, mas os cães permaneciam deitados com suas orelhas em pé como se esperando algo.
Na décima segunda badalada, enquanto o último dos raios gritou a última palavra de seu discurso, ele a estocou com a primeira das sete vezes que faria e o grito da morte foi longo agudo e ensurdecedor.
Depois consumido pelo barulho do silêncio da noite.
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